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Personagens: Planos vs. Redondos

Os personagens são um dos elementos essenciais de um texto narrativo, o que os torna muito importantes e exige que sejam trabalhados com atenção. Ao longo de séculos de literatura, um milhão de tipos de personagens com jeitos, personalidade, atitudes, metas e histórias diferentes surgiram e fizeram sua marca.

Porém, apesar de todas as diferenças, os personagens podem ser separados em alguns grupos, e entendê-los pode ajudar bastante a criar personagens e a desenvolver os que já se tem. Nessa postagem, vamos falar de dois grandes categorias: os personagens planos e redondos.

Plano x Redondo

A maior diferença entre os personagens planos e redondos é a previsibilidade e linearidade. Mas antes de tudo, uma coisa deve ser esclarecida: um personagem não linear e imprevisível não é a mesma coisa que um personagem inverossímil. Inverossimilhança é quando a lógica da própria narrativa se quebra e os eventos da história se tornam ilógicos e sem sentido, o que é uma falha de construção narrativa.

Continuando, os personagens planos são aqueles que, do começo ao fim da história, seguem o mesmo padrão de escolhas, atitudes, valores morais e objetivos, ou seja, são previsíveis – uma vez que são apresentados, é possível saber o que vão fazer a seguir, independente da situação.

Com exemplos, podemos citar Bella Swan, protagonista da saga Crepúsculo escrita por Stephenie Meyer. Do momento em que Bella conhece Edward, suas ações e pensamentos se mantêm no objetivo maior de concretizar seu amor por ele, além de outros detalhes como seu desejo de se tornar uma vampira e o de proteger aqueles que ama. Não importa o que acontece, Bella sempre se mantém a mesma com essas mesmas motivações.

Outro famoso personagem plano é o dr. Van Helsing do romance Drácula de Bram Stoker, que também já foi adaptado e remodelado para várias histórias diferentes, em livros, filmes ou séries. No livro de Stoker, Van Helsing se mantém o mesmo homem, com as mesmas atitudes e objetivos da sua primeira à última aparição na história. Ele é um homem culto e recluso, educado e esperto, um homem ideal do século XIX, disposto a tudo para derrotar o conde. Como ideal de sua época, ele também acredita que a racionalidade e força pertencem aos homens e que mulheres devem ser protegidas por eles por serem mais frágeis a certas coisas. Mesmo quando se depara com Mina Murray, a quem ele próprio chama de “mulher com mente de homem”, elogiando sua inteligência e determinação, Van Helsing não muda e tenta proteger Mina de situações estressantes ou perigosas, e ainda que mais tarde na história isso se mostre um erro, ele não altera sua postura ou seus pontos de vista.

Já os personagens redondos seguem o outro caminho. Eles podem começar a história de uma forma e terminar de outra por causa dos conflitos que se passaram durante a narrativa. Muitas vezes, eles podem ser imprevisíveis, revelando mais e mais camadas de si que não eram vistas antes, mas, ainda assim, mantendo a verossimilhança da história.

Uma personagem redonda bastante conhecida agora é Katniss Everdeen, protagonista da trilogia Jogos Vorazes, de Suzanne Collins. Suas opiniões mudam ao longo da história enquanto ela tem contato com outras pessoas com diferentes trajetórias e coisas a mostrar. Um dos exemplos disso é o quanto Katniss odeia as pessoas da Capital nos primeiros capítulos, mas logo se afeiçoa a Effie Trinket, Cinna, Portia e os membros da sua equipe nos Jogos, todos habitantes da Capital que ela passa a ver como pessoas como todas as outras. Também é possível mencionar os sentimentos de Katniss quanto aos Carreiristas no primeiro livro, carregados de raiva e medo, mas ao final dos Jogos, quanto os bestantes atacam Cato por horas para satisfazer os desejos dos espectadores, ela se sente mal por ele e lhe dá um tiro de flecha na cabeça, oferecendo uma morte rápida e misericordiosa. Ou ainda, seus instintos de sobrevivência e vontade de viver para manter sua família segura do começo da trilogia mudam para pensamentos e tentativas suicidas ao final, mostrando toda uma gradação que é consequência de tudo o que aconteceu até aquele ponto.

Outro exemplo é Jon Snow, de As Crônicas de Gelo e Fogo do autor George R. R. Martin. Jon começa como um menino ressentido por ser tratado diferente – até de forma injusta – por ser um bastardo, que sonha em se tornar um patrulheiro da Patrulha da Noite, uma irmandade que considera honrada e a qual ele pretende honrar. Contudo, ao conhecer os outros membros da Patrulha – muitos deles apenas criminosos que escapavam da pena de morte – e, mais tarde, os selvagens – que achava ser tão brutos, violentos e imorais, mas são pessoas que tentam sair de uma região muito dura e perigosa de se viver para um lugar mais seguro e, acima de tudo, são apenas pessoas – as visões de mundo de Jon se modificam radicalmente. Ele jura servir a Patrulha até a morte, abdicar a possibilidade de ter uma mulher e filhos, e não tomar partes em guerras por pensar que jamais sentiria vontade ou falta de tais coisas. Mais tarde, Jon tenta fugir para ajudar o meio-irmão Robb na rebelião contra a coroa, se alia com os selvagens ao norte da Muralha e tem um relacionamento amoroso com a selvagem Ygritte. Ainda mais, quando seus princípios começam a colidir, ele volta para a Patrulha da Noite, ajuda na batalha contra os selvagens e chega a ser eleito Lorde Comandante. Durante todos esses acontecimentos, ele se questiona sobre tudo o que aprendeu e quais decisões seriam de fato honradas ou se serviam apenas de fachada para encobrir ignorância e preconceito. E, sem trair tudo o que aprendeu e sobre o que refletiu, Jon age como nenhum Lorde Comandante passado e tenta usar a posição para assegurar que os selvagens consigam migrar para um local seguro ao sul da Muralha.

Inclusive, histórias como Jogos Vorazes, As Crônicas de Gelo e Fogo e outras semelhantes da contemporaneidade são principalmente conhecidas por possuírem uma maioria de personagens redondos.

Qual dos dois é o melhor?

A verdadeira pergunta que um escritor deve fazer é: qual dos dois é melhor para a história que quero escrever e o objetivo que pretendo alcançar com esse personagem específico?

Nenhum dos dois é melhor, mais válido ou mais maturo do que o outro. Ambos são importantes em todas as narrativas e tudo depende de contexto. Algumas histórias jamais funcionariam com se personagens X ou Y fossem diferentes da forma que foram colocados, enquanto outras poderiam atingir muito mais seu objetivo inicial se fossem de outra maneira.

Às vezes, plano ou redondo também depende de quando se está escrevendo – em certos períodos literários, personagens planos eram os ideais e os redondos poderiam ser visto até como traiçoeiros e com má mensagem; em outros, os redondos eram os mais presentes, como parte da assinatura do próprio movimento artístico.

Sabendo da diferenças entre os dois e as características de cada um, cabe ao artista decidir o que é melhor para sua própria arte.

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