Escrita

Construção de Mundos #2: Espécies

Na primeira postagem dessa série, falamos sobre o primeiro passo da criação do universo da sua história, que seria selecionar o gênero literário. Com isso definido, vamos seguir para o próximo passo: definir as espécies existentes no seu mundo.

Sabendo em que tipo de universo sua história vai se passar, resta decidir quem serão os habitantes desse(s) mundo(s). Qualquer que seja o gênero literário, o mais comum é que os seres humanos estejam presentes, afinal, nós somos humanos e nos conhecemos muito bem emocional e fisiologicamente, o que torna a escrita sobre personagens humanos muito mais fácil, mas essa não é a única opção.

Numa fantasia ou science-fantasy, podemos encontrar todo tipo de criatura mítica: fantasmas, anjos, demônios, deuses, elfos, fadas, gnomos, gigantes, dragões e etc. Já mais para o lado do sci-fi, encontramos robôs, andróides, alienígenas e assim por diante.

Além dessas, nós sempre podemos criar nossas próprias espécies baseadas ou não em outras conhecidas no nosso mundo. Um exemplo são as crianças (ou filhos) da floresta e os Outros da saga As Crônicas de Gelo e Fogo de George R. R. Martin. O autor declarou em entrevistas que se baseou nos sídhe da mitologia celta para ambas as espécies, mas, ainda assim, elas são originais, já que não pertencem a nenhuma cultura específica do nosso mundo. Outro exemplo são os hobbits e os ents de J. R. R. Tolkien.

As opções são infinitas, porém é preciso ter cautela com:

Quantidade

Um hábito comum quando começamos a entrar no worldbuilding (construção de mundos) é inserir todas as espécies que mais gostamos em um único mundo. Contudo, apesar de não haver nenhuma regra estipulando o número de seres que uma história pode ter, é sempre bom analisar nosso próprio mundo como ponto de partida.

Todos os animais possuem vários níveis de inteligência, sendo que o mais inteligente de todos somos nós mesmos, seguidos por outros primatas e outras espécies notáveis como elefantes, golfinhos, polvos e corvos, por exemplo, que, mesmo sendo bastante espertos e tendo uma grande habilidade para aprender coisas novas e resolver problemas, não chegam perto dos humanos. Além disso, sabemos que no passado existiam mais tipos de humanos: nós somos o Homo sapiens sapiens, mas antes havia o Australopithecus, o Homo neanderthalensis, o rhodiensis, o sapiens idaltu, e etc. Todos extintos, exceto pela nossa subespécie. Ou seja: mesmo que seja comum o surgimento de espécies relativamente inteligentes, é incomum que um número muito elevado chegue a coexistir por muito tempo.

Não só isso, mas um número incontável de espécies pode deixar o leitor confuso e propenso a esquecer de uma boa parte delas e misturar as outras que se lembra. O mais recomendado, então, é escolher uma quantidade no máximo mediana de seres inteligentes do seu mundo.

Se a sua história envolve a presença de vários mundos/planetas, então é possível aumentar esse leque, mas distribuindo as espécies entre as localidades e sempre mantendo uma certa consistência entre aquelas que habitam o mesmo lugar, para que seja possível imaginar que elas vieram do mesmo mundo.

Um exemplo de bom planejamento nesse caso são as criaturas do planeta Pandora de Avatar. Nessa história, foram criadas toda uma fauna e flora diferentes das que temos na Terra e todas elas possuem certas características que as une numa ideia de quem são os habitantes do planeta, e existe apenas uma espécie dominante, que seriam os Na’vi.

Também é possível que várias criaturas sejam mencionadas com apenas algumas existindo de fato naquele mundo e as outras assumindo um aspecto lendário. Por exemplo, em As Crônicas de Gelo e Fogo existem humanos, crianças da floresta, Outros, gigantes e dragões (que não nasciam há mais de cem anos no momento que a narrativa começa), além de animais como mamutes (que, para nós, já estão extintos), porém, várias outras são mencionadas como apenas lendas, o que acontece com sereias e krakens, considerados pelas pessoas desse mundo como invenções de pescadores bêbados. Outro caso acontece em Os Instrumentos Mortais de Cassandra Clare, que possui nefilins, demônios, lobisomens, vampiros, seelies e diversos tipos de híbridos, mas seres como os zumbis não passam de ficção.

Outra possibilidade é trabalhar com o nível de inteligência ou até características mais biológicas como a aparência e a expectativa de vida de cada criatura. Cada uma pode ser superior, igual ou inferior a nossa espécie, isso é algo de total escolha do autor.

Na minha saga de science-fantasy (com a fantasia muito mais forte), além da Terra existem vários outros mundos com seres diferentes. Em um, existem humanos, elfos, sereias, dríades (podendo os quatro viver por milênios), fadas e dragões, sendo que as fadas são as menos inteligentes de todos e as que vivem por menos tempo, em contraste com os mais evoluídos e de maior longevidade que são os dragões; em outro mundo, apenas humanos como inteligentes, que vivem por mais ou menos 200 anos; em outro, dragões e animais semelhantes a dinossauros, e assim em diante. Além disso, as populações de cada mundo tiveram contato umas com as outras e migrações ocorreram, o que explica a presença de algumas espécies em mundos onde não existiam originalmente, tudo isso unido também ao fato de que aqueles que migraram já possuem características diferentes do seu povo original devido à evolução e adaptação ao ambiente.

Aparência física

Quando trabalhamos com seres que já fazem parte do imaginário popular, é fácil nos sentirmos presos a certas ideias: elfos são altos, brancos e louros (ou ruivos, no máximo); anões (como seres mágicos) são, claro, pequenos, carrancudos, feios e talvez morenos ou ruivos; sereias são lindas criaturas que tem tudo de mulher exceto as pernas e possuem todas cabelos longos e características europeias; robôs são humanóides de lata com expressões duras e vozes metálicas sem vida; alienígenas são humanóides de traços reptilianos ou de anfíbios com alguns braços e olhos a mais ou a menos.

Mas a verdade é que não existe nenhuma regra específica quanto a isso e, inclusive, muitas vezes essas ideias se tornam inverossímeis ou irreais (mesmo considerando que se trata de uma ficção).

Ora, se o seu mundo possui a tecnologia para criar robôs e andróides que façam parte da sociedade como um todo, por que não teria a tecnologia de fazê-los parecer o mais natural possível, ou ainda, por que eles precisam parecer humanos e não reptilianos, ou ainda uma inteligência artificial incorpórea, talvez? Todos sabemos que a forma física humana pode ser bem limitada para realizar várias coisas, então seria coerente que, a partir de um certo nível de inteligência e independência das máquinas, elas buscassem uma forma física mais versátil, dependendo dos seus objetivos.

Se os humanos do seu mundo (e do nosso) possuem aparências variadas dependendo do local onde nasceram, formando tantas etnias, por que o mesmo não aconteceria com os elfos ou as sereias? Uma população humanóide vivendo em um local de temperaturas altas e grande exposição solar não levaria tanto tempo para adquirir uma tonalidade de pele que não fosse, no mínimo, levemente mais escura do que uma coloração quase nórdica. Por exemplo, a população branca da América Latina já possui diferenças visíveis dos brancos europeus que eram seus ancestrais e a colonização do nosso território começou há apenas mais ou menos 500 anos. Do mesmo modo, sereias correriam um grande risco vivendo no alto mar com uma pele tão clara que funcionaria como um farol para os outros peixes como tubarões, por exemplo. A maioria dos animais vivendo nessas áreas possuem tons mais escuros nas costas, que, vistas de cima, se mesclariam com a escuridão do mar, e tons mais claros na barriga que, vistos de baixo para cima, também poderiam se camuflar com a luz do sol, diminuindo as chances de serem vistos por predadores. Por que sereias seriam diferentes? Elas não precisam fugir de predadores e sobreviver da melhor forma possível (o que, aliás, seria bem difícil com cabelos e seios enormes, já que os fios e a gordura diminuem a velocidade do nado e a profundidade que pode ser alcançada)?

Não apenas isso, mas o que impede que eles tenham peles azuis, verdes ou roxas? Trabalhando com ficção de fantasia e científica, temos toda uma variedade gigantesca de opções que podem ser usadas para trabalhar nossa criatividade.

É importante deixar claro que: não há problema algum em se manter nas ideias clássicas dessas criaturas se você quiser. A história é sua e você dita as regras. A dica aqui é: você pode variar quando e como quiser e não há necessidade alguma de se manter a padrões fixos ou estereótipos.

Generalizações

Quando criamos uma certa espécie que viverá no mundo da nossa história, ao mesmo tempo criamos sua cultura, sua personalidade e seus valores. E, como consequência, corremos o risco de cair em uma armadilha: generalizações. O que quero dizer com isso?

“Elfos são calmos e elegantes, dados à extravagância e metáforas místicas. Anões são brutos, barulhentos, mal educados e rabugentos, inclinados à violência. Sereias são conquistadoras, sensuais, manipuladoras e ameaçadoras. E, assim, todos os personagens dessas espécies são exatamente iguais e se encaixam nessas descrições.

Mesmo que pessoas de determinadas culturas ou indivíduos de determinadas espécies costumem agir de maneiras generalizadas quanto a algumas coisas (humanos são mais racionais, cachorros são mais energéticos, gatos são mais independentes e ariscos, chimpanzés são mais agressivos e bonobos são mais pacíficos), isso não quer dizer que absolutamente todos os indivíduos vão agir dessa forma, ou ainda, que não possuem nenhuma outra característica pessoal além dessas.

Escrever personagens dessa maneira pode realmente diminuir a qualidade de uma obra, pois passa ao leitor as sensações de: 1. não estar vendo nada de novo, então para quê continuar lendo? 2. o autor foi preguiçoso e 3. que eles já podem prever com 100% de certeza qual vai ser a função de personagem x de espécie y, o que retorna aos pontos 1 e 2.

Concluindo: os seres que pertencem a determinada cultura de determinada espécie realmente possuem certas características gerais, mas elas não são as únicas possíveis nem com outros animais ou com humanos, então por que elfos, sereias e até robôs seriam todos iguais? O perigo nesse caso seria o de acabar empobrecendo o seu worldbuilding e os seus personagens.

Propósitos

Esse talvez seja o ponto mais importante ao definir as espécies do seu mundo: qual o propósito desses seres na trama? Se eles nunca terão impacto na história ou no próprio mundo em que vivem, por que se dar ao trabalho de colocá-los lá?

Nenhuma criatura passa pelo mundo sem deixar sua marca, muito menos uma espécie inteligente e, menos ainda, uma espécie inteligente que convive com outras. É muito importante delimitar como funcionam as relações entre esses seres e quais os impactos disso de um para o outro e no próprio mundo. Dependendo da complexidade de comunicação entre os povos, os acontecimentos importantes de um não passaria em branco para a outra. Veja, por exemplo, o nosso mundo, no qual estamos cada vez mais conectados e, um movimento social ou econômico em uma nação traz resultados nas outras e exige dessas um tipo de resposta.

Digamos que a sua história é de fantasia e existe um mundo onde vivem humanos e fadas. Humanos vivem em uma sociedade mais urbanizada, parecida com a nossa própria, enquanto as fadas preferem viver em harmonia com o ambiente, mantendo um equilíbrio sem jamais usar da terra mais do que o necessário. Sua história é focada na sociedade humana, que passa por um momento de falta de suprimentos, crescimento populacional e os governantes estão pensando em uma tática expansionista para resolver o problema. Como as fadas reagiriam? Tal decisão teria consequências diretas com seu método de vida, considerando que os humanos vão começar a migrar em busca de suprimentos que podem estar em suas terras. Colocar o conflito como vindo apenas de dentro da sociedade humana poria em questão a própria existência das fadas na história: se elas não vão dar nenhum tipo de resposta e se qualquer resposta possível vier de humanos que concordam ou discordam com as medidas, por que elas estão lá?

Há ainda a questão do intercâmbio cultural, que seria a troca de traços culturais que ocorre entre povos diferentes que entram em contato. Seria possível que criaturas diversas com culturas diversas vivessem lado a lado e mantivessem seu modo de vida intacto por milênios? A resposta é: não. Em todos os exemplos que temos no nosso mundo de sociedades próximas umas as outras, em algum ponto da História, uma começa a adquirir traços da outra, sejam quais forem: hábitos de higiene, vestimentas, penteados, organização social, econômica ou política, religião, idioma, expressões, sotaques, táticas de guerra, agricultura, e, principalmente, tecnologia.

Mais uma vez: se as espécies do seu mundo não vão causar nenhum impacto umas nas outras, no meio ambiente ou na trama como um todo, por que elas estão lá?

 

Fechando então essa postagem, podemos criar uma pequena lista de coisas a se checar quando definirmos as espécies que viverão no nosso mundo:

  1. Quais são?
  2. Quantas são?
  3. Qual seu nível de inteligência?
  4. Como elas se parecem? Como serão retratadas na história? (física e culturalmente)
  5. Qual seu propósito na história?

Com esses pontos traçados, você já pode definir quem vai habitar o seu mundo.

1 thought on “Construção de Mundos #2: Espécies”

  1. Sempre fui apaixonada pela visão “clássica” das sereias e tenho gostado da abordagem mais agressiva, guerreira, da série Siren. O que tenho sentido falta são boas adaptações de Fadas que, segundo a maioria da lore, são bem oportunistas, praticamente traiçoeiras. Amaria ver algo do tipo, quem sabe até uma fantasia moderna sobre fadas advogadas que encontram formas de burlar contratos e acordos haha ou então fadas na máfia.
    Gostei muito do ponto sobre intercâmbio cultural! Só enriquece qualquer obra ❤

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