Análises

Simbolismos na Literatura e Cinema #4 – Velho Enrugado (ou os Três Odin’s em HTTYD – parte 3)

Finalmente chegamos na parte 3 da análise dos personagens de Como Treinar o Seu Dragão (livros, filmes, séries e HQ’s) que possuem simbolismos de Odin. E, para fechar com chave de ouro, o personagem dessa vez foi menosprezado pelos filmes, mas ainda assim é um dos mais interessantes da saga literária e nada menos importante.

Digam olá para o Velho Enrugado.

ATENÇÃO: Spoilers adiante.

O Personagem

O Velho Enrugado aparece logo no primeiro livro da saga e é ninguém menos do que o avô materno de Soluço e o vidente de Berk. Nos livros, como nos filmes, Soluço começa a história sem ter muito contato com familiares ou amigos, porém, enquanto nos filmes o rapaz era mais ou menos próximo de Bocão, nos livros, seu confidente é o avô, com quem ele desabafa, relaxa e pede conselhos.

"— Capturei o tal dragão.
— Eu disse que você conseguiria, não disse? — replicou Velho Enrugado, muito satisfeito consigo mesmo.
Velho Enrugado passara a prever o futuro depois que envelhecera, embora sem muito sucesso.
— Uma criatura extraordinária, você tinha dito — queixou-se Soluço. — Um dragão realmente fora do comum. Um animal que realmente faria com que eu me destacasse.
— Isso mesmo — concordou o Velho Enrugado. — A profecia era muito nítida.
— A única característica extraordinária desse dragão — continuou Soluço —, é como ele é extraordinariamente PEQUENO. Nesse ponto, ele é mesmo completamente fora do comum. [...]
— Ah, querido — disse o Velho Enrugado, soltando uma risadinha abafada pelo cachimbo.
Soluço olhou para ele com ar de reprovação, e Velho Enrugado rapidamente disfarçou o riso, fingindo tossir.
— Tamanho é algo relativo, Soluço — disse Velho Enrugado" (COWELL, 2010, p.70)
A família de Soluço nos livros. Ilustração de Bruna Andrade em: https://bruwnie.artstation.com/projects/yynqK

Ele parece ser no começo nada mais do que um bom velhinho simpático que tem visões, mas ainda no mesmo livro o vemos mostrar um vislumbre de uma personalidade sarcástica. Uma coisa curiosa é que, por mais que as visões do Velho estejam corretas, a tribo dos Hooligans, em maioria, insiste em não acreditar no que ele diz – até mesmo Soluço no começo da história. Talvez seja esse um dos reforçadores do sarcasmo natural do homem.

"— Eu os chamei aqui hoje — berrou Stoico — porque temos um problema a resolver. Um dragão gigante está sentado na Praia Longa. [...] Não se trata de um dragão qualquer — disse Stoico. — É uma criatura ENORME. Imensa. Monstruosamente grande. Nunca vi nada igual. Parece mais uma montanha que um dragão. [...] É claro que o bicho precisa ser deslocado. Mas é uma criatura imensa. O que podemos fazer, Velho Enrugado? Você é o sábio da Tribo.
— Você me envaidece, Stoico — disse Velho Enrugado, que parecia se divertir com a situação toda. — Trata-se de um Dragonusmarinhus Gigantescus Maximus, e um espécime particularmente grande, eu diria. Muito cruel, muito inteligente, de apetite voraz. Mas meu campo é a Poesia Irlandesa Primitiva, não sou especialista em répteis de grande porte. O Professor Traste é quem pesquisa dragões. Talvez vocês devessem consultar o livro dele a respeito do tema.
[...]
— Como treinar o seu dragão — anunciou Bocão solenemente.
Ele fez uma pausa e leu:
— GRITE COM ELE.
Outra pausa.
— E...? — indagou Stoico. — Grite com o dragão e...? [...] Não tem nada no livro a respeito dos Dragonusmarinhus Gigantescus Maximus em especial?
Bocão verificou novamente no livro.
— Isso, não — disse ele. — Só fala sobre berrar, mesmo.
— Hmmm — disse Stoico. — É conciso, não é mesmo? Eu nunca tinha reparado nisso antes, mas é conciso... Conciso, porém exato — ele acrescentou rapidamente, — como nós, os vikings. Graças a Thor temos nossos peritos. Agora [...], como se trata de um dragão grande...
— Imenso — interrompeu Velho Enrugado, alegremente. — Gigantesco, estupendamente enorme. Cinco vezes maior que a grande Baleia-azul.
— Sim, obrigado, Velho Enrugado — disse Stoico." (COWELL, 2010, pp.140-143)

Ainda assim, quanto mais lemos sobre ele, mais camadas vamos descobrindo do bom velhinho sarcástico. Uma delas, inclusive, demonstra seu momento de raiva. As piadas e sorrisos são jogados de lado em um momento em que o Velho Enrugado enfrenta Stoico, o Imenso, não só diante de toda a tribo de Berk, como também de dezenas de outras tribos vizinhas que visitavam a ilha.

"— Soluço sabe falar com os dragões! — berrou ele, bem alto mesmo.
— Soluço? — disse Bocão Bonarroto.
— SOLUÇO? — disse Stoico, o Imenso.
— É, Soluço — disse Velho Enrugado. — O garoto pequeno, de cabelo vermelho, sardas, o mesmo que você queria mandar para o exílio hoje de manhã. — Velho Enrugado ficou sério. — Para que o sangue das Tribos não enfraquecesse, lembra? Seu filho, Soluço.
— Eu sei quem é Soluço, obrigado, Velho Enrugado — disse Stoico, o Imenso, sentindo-se desconfortável. — Será que alguém sabe onde ele foi parar? SOLUÇO! Apresente-se!
— Parece que você vai ser útil, finalmente... — Velho Enrugado falava sozinho." (COWELL, 2010, pp.148-150)

Contudo, há ainda outra parte desse homem misterioso, uma a qual ele próprio parece tentar esconder. No 5º livro da saga, Como mudar uma história de dragão (2011), mencionam que Velho Enrugado pensa que os problemas que surgem são sua culpa, faz um voto de silêncio e se esconde em um buraco no chão.

Soluço, então, se depara com um viking errante chamado Fabuloso Figurão que o salva de mais uma situação quase-mortal. Depois disso, Fabuloso conta sua história ao menino, dizendo que, quando jovem, era um homem feliz e completamente apaixonado por uma jovem lindíssima, que também o amava de volta.

Contudo, o pai da moça entrou no meio da relação, pois exigia que o homem que quisesse a mão de sua filha fosse inteligente e capaz de realizar uma tarefa considerada impossível: roubar a Pedra de Fogo da Ilha dos Lava-Loucos, pedra tal que nem mesmo a tribo local encontrara em séculos. Na noite anterior de sua partida, Fabuloso e sua amada se encontraram em segredo e ela lhe deu a metade de uma pedra de rubi que tinha para simbolizar seu amor. Fabuloso partiu, mas, falhou, seu dragão foi morto e ele foi escravizado por 15 anos. No seu encarceramento, ele conheceu um amigo que conseguiu um jeito de escapar da prisão. Fabuloso lhe entrega sua metade de rubi para que ele a levasse à sua antiga amada e lhe dissesse que ele estava vivo, porém preso. Depois de liberto, Fabuloso tentou saber de notícias da amada e confiou no relato que o amigo lhe contou, de que encontrara a moça e levara a ela a pedra de rubi, mas que ela a desdenhara e jogara no mar, dizendo que Fabuloso foi um fracasso e que agora estava casada com um verdadeiro herói. Depois disso, Fabulo Figurão amargurou-se para o amor.

Quando Soluço perguntou ao homem qual era o nome de sua antiga amada, a resposta foi um choque: era o nome de sua mãe (Valhalarama nos livros e Valka nos filmes). E, portanto, o homem que enviou Fabuloso a uma missão impossível era Velho Enrugado, então não tão velho nem tão enrugado. Mais tarde também descobrimos que o falso amigo de Fabuloso era Alvin, o Traiçoeiro (quem já discutimos no post anterior), que na verdade tinha roubado o rubi para si mesmo e mentiu sobre tudo o que contou, exceto pelo fato de que Valhalarama tinha se casado com outro homem – Stoico, o Imenso.

"— Você deveria ter aprendido uma lição com seu velho e tolo avô. Ele aprendeu a não tentar interferir no destino. E ele pensou que fosse esperto o bastante para ficar com a Pedra de Fogo!
Alvin rosnou:
— Tudo que SUAS interferências, suas tolas Missões, conseguiram foi partir o coração da filha... Queria que você tivesse visto como Valhalarama chorou quando lhe contei que Fabuloso estava morto... Ah, foi trágico.
— Mentiroso! Traidor! Vilão! — gritou Soluço." (COWELL, 2011, p.184)

Ainda assim, mesmo sabendo do arrependimento do velho por ter interferido, Fabuloso Figurão não nutriu sentimentos de compreensão ou perdão para com ele.

"— Agora entendo por que Velho Enrugado está sentado no fundo daquele buraco — disse Soluço.
— Quem é Velho Enrugado? — quis saber Fabuloso.
— Velho Enrugado é o pai de Valhalarama — respondeu Soluço — e meu avô. Deve ter sido ele que lhe atribuiu a Tarefa Impossível de encontrar a Pedra do Fogo.
— AH! — disse Fabuloso com amargura. — Essa confusão toda é culpa dele, para início de conversa!" (COWELL, 2011, p.126)
Velho Enrugado no buraco ao lado de Soluço em “Como Mudar uma História de Dragão” (2011)

Chegando perto do final da saga, Soluço descobre que o antigo rei de todo o arquipélago, Barbadura, o Terrível, não só era seu ancestral como espalhou seus tesouros por diversas ilhas e previu que apenas o viking que reunisse todos os tesouros perdidos poderia ser novamente proclamado Rei de Todo o Arquipélago Barbárico. Soluço percebe que possui vários desses tesouros, mas, após sofrer um golpe de traição de Alvin, que rouba os tesouros para si e o título de rei, é exilado e um prêmio é posto por sua cabeça – e então, o jovem rapaz passa um ano perambulando sozinho pelas florestas apenas com Banguela e seu outro dragão de montaria, Caminhante de Vento.

Durante o tempo isolado, um ponto pertinente nos pensamentos de Soluço é o quanto sua mãe foi distante durante toda sua vida. Valhalarama não some nos livros como ocorre com Valka, porém, ainda assim se mantém longe. A partir do momento que Soluço não era mais pequenino, Valhalarama partia em uma missão após a outra, demorando meses para retornar e ficando pouco tempo em casa antes de sair de novo. O auge do conflito ocorre quando é ela quem encontra Soluço na floresta e, de início, parece nem reconhecer o filho e o captura para levá-lo diante de Alvin. Soluço esbraveja contra ela, perguntando como ela poderia ser capaz de se afastar tanto ao ponto de esquecê-lo e traí-lo.

Valhalarama não diz nada até o último minuto. Enfim, na prisão dos escravos de âmbar, onde quase toda a tribo dos Hooligans tinha sido posta em correntes por Alvin, Valhalarama diz tudo em um discurso público. A mulher conta que, desde pequena, ouvia o pai (Velho Enrugado) falando sobre a profecia de Barbadura e fora treinada como uma guerreira e buscadora excelente, pois ele acreditava que a filha deveria encontrar os tesouros perdidos e se declarar rainha. E por muitos anos, até quando era uma mulher adulta, casada e mãe, ela continuou saindo em missões de busca pelos tesouros, sempre sem sucesso. Até que então, assim como seu pai, ela passou a perceber o quanto os tesouros pareciam quase que naturalmente atraídos em direção do filho, que os achava por acidente e os levava embora sem dificuldade. E aí, ela entendeu e soube muito bem que lado tomar na guerra: o lado de sua tribo, de sua família, seguindo o próprio filho como líder da rebelião contra Alvin, o Traiçoeiro.

Velho Enrugado não tem mais uma participação muito marcante no final da saga, mas ainda assim, conseguimos ver muito de quem ele é hoje e de quem foi no passado; e de como, mesmo parecendo apenas um vovozinho coadjuvante, na verdade estaria tão entrelaçado nos destinos de tantos personagens que quase poderíamos dizer que foi ele mesmo quem causou os eventos necessários para a história acontecer.

Simbolismos

Odin

O Velho Sábio

A primeira faceta que percebemos logo de cara é a do velho sábio – afinal, é exatamente essa a função que Stoico descreve ser a de seu velho sogro dentro da tribo.

Entre os nomes de Odin, podemos encontrar: Fjölnir e Fjölsviðr (muito sábio), Forni (ancião), Gagnráðr (conselheiro avantajado, conselheiro adverso, conselheiro de viagem), Fimbulþulr (grande poeta), Hárbarðr (barba cinzenta), Karl (velho, homem velho), Sanngetall (o que alcança a verdade), Sannr e Saðr (verdade).

Tanto podemos ver nomes ligados à imagem de um homem velho, quanto à sua sabedoria e busca pela verdade. Sabemos que Odin não é só um deus de sabedoria, mas também de conhecimento – ele é muito inteligente e vive em busca de novos aprendizados.

Mesmo que não vejamos Velho Enrugado buscando por mais conhecimento, é possível notar que ele é um homem que já possui muitas informações aprendidas. Nos trechos selecionados, uma mente desatenta pode até não perceber que ao mesmo tempo em que o Velho diz não saber muito sobre grandes répteis e sim sobre poesia, ele dá informações detalhadas que não estão em nenhum livro ou material físico local. Parte do teor cômico da cena também está justamente em como o Velho obviamente possui aquele conhecimento, mas ainda assim instiga os vikings a buscá-lo por si próprios no livro que tanto vangloriam e que, também obviamente (como vemos), não leram.

Um traço de Odin muito presente nos mitos é o de que ele dificilmente vai só dar o conhecimento para alguém. Pelo contrário, ele prefere instigar a mente das pessoas de modo que elas encontrem as respostas sozinhas, e tudo isso com um sorrisinho enigmático e sarcástico no rosto.

Outra curiosidade é o que o Velho menciona ser sua especialização de estudo: poesia antiga. Em um mito, Odin se disfarça, usando o nome Bölverk, e seduz a giganta Gunnlöð para que ela lhe desse de beber o hidromel da poesia e inspiração. Assim, ele adquire a habilidade poética.

Para nós pode parecer pouco, mas, no mundo antigo e medieval, os poetas e os bardos possuíam alto respeito social. Sempre deveria haver um espaço para hospedar um poeta, pois eram os melhores deles que cantariam os feitos dos chefes, guerreiros e reis, e os eternizariam – e claro, isso também dependeria de como o tal bardo seria tratado pelos locais, ou então, suas canções poderiam ser bem pejorativas. Muitas histórias também eram passadas adiante em forma de versos cantados e rimados (muito mais fáceis de decorar – é só ver quantas músicas você sabe de cor mesmo sem ouvi-las por anos), assim como encantamentos eram proferidos em um ritmo específico. Ser um poeta era de grande importância para os antigos e era esse um dos domínios de Odin.

O Mestre da Magia

Ljóð ek þau kann
er kannat þjóðans kona
ok mannskis mǫgr

Eu conheço tais canções
que esposa de rei não conhece
e nem os filho dos homens
— Hávamál, 146

Uma das facetas mais conhecidas de Odin envolve sua habilidade na bruxaria – habilidades adquiridas e também criadas por ele, como a magia rúnica, descoberta por ele depois de se sacrificar a si mesmo em Yggdrasill. Como descrito por Snorri Sturluson:

"Odin podia alterar sua forma: seu corpo ficava deitado como se estivesse morto ou adormecido; mas então ele assumia a forma de um peixe, ou um verme, ou pássaro, ou grande mamífero e partia em um piscar de olhos para terras distantes para tratar de seus negócios ou dos de outras pessoas. Com meras palavras, ele era capaz de apagar o fogo, acalmar o oceano durante uma tempestade e enviar o vento para qualquer quadrante que desejasse... Às vezes, até chamava os mortos da terra, ou se colocava ao lado dos montes mortuários. Tinha dois corvos a quem ensinara a fala do homem; e eles voavam por toda parte sobre a terra, e traziam as notícias para ele. Em todas essas coisas, ele era eminentemente sábio. Ensinava todas essas íþrótt [artes] nas Runas, e canções que são chamadas galdrar... Odin também compreendia a íþrótt [arte] na qual o maior poder está abrigado, e a qual ele próprio praticava; a saber, a que se chama seið [magia]. Por meio disso, podia saber de antemão a sorte predestinada dos homens ou o destino ainda não completado deles; e também causar a morte, a má sorte ou problemas de saúde nas pessoas, e pegar a força ou inteligência de uma e dá-la para outra. Mas depois dessa olkynngi [feitiçaria], seguia-se tal ergi [fraqueza e ansiedade] que não era considerado respeitável que os homens a praticassem; e, por conseguinte, as gyðjunum [sacerdotisas] foram educadas nessa arte." (STURLUSON, 1844 apud PAXSON, 2020, pp.65-66)

Entre seus muitos nomes e títulos estão Galdraföðr (pai das canções mágicas), Glapsviðr (sábio das palavras mágicas), Fjallgeiguðr (o deus que muda de forma).

Velho Enrugado menciona ter visões, sejam elas espontâneas ou então utilizando um método divinatório específico. Um método mencionado na saga é o de olhar nas chamas em busca de vislumbres do futuro, método chamado de piromancia – a adivinhação pelo fogo (o que também nos faz lembrar do nome de Odin, “Olho Flamejante”, que, apesar de ter a ver com intimidação e guerra, combina de um modo quase poético com a cena).

No Hávamál, após falar sobre como adquiriu a sabedoria das runas, Odin fala sobre as 18 canções mágicas que conhece e suas finalidades. Elas envolvem guerra (abençoar lâminas e sabotar os inimigos), cura, proteção, necromancia e sedução.

Não vemos o lado guerreiro e nem o lado sedutor do Velho nos livros, mas além de realizar adivinhações, ele também é chamado para atender os berkianos feridos, doentes ou envenenados em várias situações, sendo também então o curandeiro da ilha. Dois de seus pacientes, inclusive, foram Perna de Peixe e o próprio Soluço.

Valka e Valhalarama

Como sabemos, Velho Enrugado é o avô materno de Soluço – então, obviamente, pai de sua mãe. Outra coisa curiosa é como ela, em parte, reforça os símbolos odínicos de seu pai (e também do marido e do filho).

Por mais que os nomes dos personagens da saga pareçam estranhos e até engraçados, vamos olhar para os dois nomes dessa mulher com mais atenção.

Nos livros ela é Valhalarama, um nome que obviamente é derivado de Valhalla. Em nórdico antigo, “valr” significa “morto, assassinado, guerreiro morto”, e “hǫll”, “salão”. Então Valhǫllr é o salão dos combatentes mortos, localizado em Asgard e governado por Odin, para onde ele leva as almas dos mortos em batalha que ele considera dignos o suficiente de formar seu exército.

Nos filmes, seu nome é Valka, um nome que lembra muito a palavra valquíria. Do nórdico antigo, a palavra tem a mesma etimologia de “valr” somada a “kyrja”, que seria “aquela que escolhe”. Então “valkyrja” é “a que escolhe entre os mortos em batalha”. As origens das valquírias são confusas: uns dizem ser servas de Freyja e Odin, outros que seriam filhas de Odin servindo a ele e a Freyja. De todo modo, a ligação entre elas e o deus é clara.

Em outras fontes, Valka é um apelido usado de verdade nos países escandinavos desde a Era Viking para o nome nórdico Valgerðr, que viria de valr + garðr (cerca, muro, encarceramento, terra, residência, castelo), significando então “a casa/terra dos mortos em batalha”. Esse significado do nome quase se iguala com o da sua contraparte dos livros, Valhalarama, reforçando o simbolismo de seu nome com o salão de Odin.

Entre os nomes do próprio Odin, temos Valföðr, “o pai dos mortos em batalha”. É engraçado pensar como, olhando bem, poderíamos até falar como sendo “o pai da Val” (óbvio que não é uma tradução correta, apenas mais um paralelo com a nossa licença poética).

As interferências no Destino

Um ponto muito importante de todo o arco do Velho Enrugado é de como ele muitas vezes interferiu nos destinos das pessoas ao seu redor, acreditando saber o que deveria ser feito e como para que determinado resultado acontecesse.

Nas postagens anteriores, discutimos como Odin recebeu profecias envolvendo o passado e o futuro dos Aesir quando foi se consultar com o espírito de uma völva morta; e, como muitas vezes, nos perguntamos se, exatamente por estar ciente do que viria acontecer, ele talvez não teria sido o causador de alguns eventos.

Odin sabia que estava previsto que Loki mataria seu filho, Baldr, e que ele próprio então planejaria uma vingança contra o jötunn que lhe criaria tamanho ódio para que Loki decidisse trazer um exército contra os deuses no Ragnarök. E ainda assim… ele não parece ter interferido muito nessa questão, além de ter ainda assim se vingado de Loki de forma brutal. Odin sabia que estava previsto que Fenrir o engolia vivo e que Jörmungandr envenenaria Thor e faria com que outro de seus filhos morresse. E ainda assim… Odin arremessa Jörmungandr para longe, deixando-o raivoso, e trai a confiança de Fenrir, fazendo-o jurar vingança contra os deuses. Quase parece que ele queria se certificar de que as coisas ocorressem de acordo com a profecia.

“O que Odin sussurrou no ouvido do corpo morto de Baldr?”

O que vemos Odin de fato fazer é reunir as almas de grandes guerreiros mortos para formar seu exército para o Ragnarök. Ele sabia que tudo não só aconteceria, como deveria acontecer? Havia um motivo maior por trás de tudo, maior do que pequenas brigas, maior até mesmo do que a dor de ver seus filhos morrerem? Algo tão importante no grande esquema das coisas que Odin entendeu que seus instintos paternos de proteger Baldr deveriam ser deixados de lado?

Como o próprio Soluço, agora velho, maduro e reflexivo, nos lembra no epílogo do 5º livro: se o Velho Enrugado não tivesse enviado Fabuloso Figurão para a Tarefa Impossível que o escravizou, se Alvin não tivesse traído Fabuloso, se o coração de Valhalarama não tivesse se partido pensando que seu amado estava morto, então ela jamais teria se apaixonado novamente e casado com Stoico, e Soluço jamais nasceria.

O Velho Enrugado nunca quis ver sua família sofrer, muito menos sua filha e seu neto. Mas se ele tivesse deixado sua filha viver feliz seu primeiro amor e Soluço não nascesse, a Morte Verde não seria derrotada no primeiro livro, Alvin não teria sua nêmesis que o enfrentasse e o derrotasse, as tribos do arquipélago seriam dominadas e escravizadas por ele, os dragões não teriam sido libertos, e o dragão Furioso teria liderado sua rebelião sem impedimentos e continuaria com seu plano de exterminar toda a raça humana.

"Quando Baldr começa a ter pesadelos, Odin cavalga até Hel para consultar a Völva que está enterrada no portão oriental. Ela não apenas conta quem vai matar Baldr mas, como vimos anteriormente, informa a Odin quem irá vingá-lo. Na descrição do funeral de Baldr, Sturlusson diz que a morte de Baldr foi a mais difícil para Odin, porque ele estava ciente da falta que ele faria (Gylfaginning 49). Mas, apesar da predição da Völva, Odin nada faz para impedir a tragédia.
Talvez a coisa mais interessante a respeito do fim de Baldr seja a pergunta com a qual Odin, disfarçado, vence as competições de enigmas com o gigante Vafthruthnir: 'O que Odin disse no ouvido do filho antes de montar a pira?' (Vafthruthnismál 54).
Essa é a grande pergunta não respondida na antiga tradição nórdica, que não impediu que os heathenianos modernos especulassem. Uma das especulações mais populares começa com o fato que, embora Baldr esteja morto para o mundo que conhecemos, na reinicialização global que acontece depois do Ragnarök, tanto ele quanto seu assassino voltam para reinar. Somente em Hel ele pode ser preservado até que essa época chegue. Este é o conhecimento que mantém Odin em silêncio, a dor que ele suporta para sempre." (PAXSON, 2020, pp.192-193)

Ele sabia de tudo isso quando aconteceu? O livro dá a entender que não, mas ainda é surpreendente ver o quanto o seu papel foi importante nos eventos de maior escala.

Um relato e reflexões sobre Odin

Odin também tem os nomes Þriði (terceiro) e Þriggi (triplo), o que achei muito interessante de descobrir em uma pesquisa para analisar os três Odin’s em Como Treinar o Seu Dragão. Enquanto pesquisava, me deparei com esse texto, um trecho da peça escrita por Diana L. Paxson que seria apresentada em um kindred, baseada no texto Gylfaginning:

O Rei Gylfi visita a Mansão de Hár
A sala está arrumada no estilo do teatro. Na frente, foram organizados três assentos de altura variada, um acima do outro. Três figuras encapotadas estão sentadas neles. Gylfi (um rei disfarçado de pobre viajante) bate na porta.
[...]
Gylfi: (olha para as figuras e sussurra para a governanta) Quem são eles?
Governanta: O que está no trono mais baixo se chama Hár, o Superior. Ele é um rei. O seguinte é Jafnhár, Igualmente Superior. Ele também é um rei.
Gylfi: E o terceiro?
Governanta: É o Terceiro, Thridhi. Ele é...
Gylfi: Consigo adivinhar, ele também é um rei. (PAXSON, 2020, pp.23-24)

Outro trecho que chama atenção é o relato de Lorrie Wood no mesmo livro, falando sobre as complexidades e infinitas facetas de Odin:

"Então, o quanto Odin poderia ser menos Odin, quer eu o esteja chamando de Vegtam ou Valfodr? Esses são nomes do deus em diferentes lugares, mas são o mesmo deus. Quem é o Arauto Distante? Quem é o Domador do Caminho? Quem é o Encapuzado? Quem é o Velho? Quem é o Barba Grisalha, o Bigode de Pelo de Cavalo, o Olho de Fogo e o Olho Morto? Quem é o Causador de Tragédia e o Desejado?
Sim." (WOOD apud PAXSON, 2020, p.29)

Creio que para fechar essa postagem e a série dentro da série, nada expressaria melhor uma síntese de tudo do que um relato feito por James Hodur para a escritora Diana L. Paxson e que ela compartilha em seu livro.

"Decidi revelar como eu encaro Óðinn, o Pai Supremo. Para mim, Óðinn é a figura de um avô. Ele é um avô que tem um passado. Ele viu a guerra, a tragédia e tem cicatrizes. Ele não deixa que essas cicatrizes o governem. Como qualquer avô ou membro da família, ele pode ser bondoso e amoroso. Mas também pode ser cruel e indiferente. Isso faz parte da vida e de qualquer relacionamento familiar. Encaro também Óðinn como um mestre. Ele me inspira e me gratifica com muitas ideias e pensamentos. Mas ele pode ser um chefe de serviço desafiante e me apresentar problemas para resolver. E eu preciso mostrar serviço.
Dizer que meu relacionamento com Óðinn é fácil está longe de ser verdade. Dizer que não vivenciei outros aspectos de Óðinn na minha vida é atenuar a verdade. Nosso relacionamento é tão variado e complexo quanto ele. Assume muitas facetas e provavelmente continuará a fazê-lo enquanto crescemos juntos.
Quando um Poder tem tantos nomes e máscaras quanto Odin, haverá obviamente muitas maneiras de trabalhar com ele. O relacionamento entre filho e pai é um dos mais positivos. Muitos heathenianos se referem aos deuses como nossos Parentes mais Velhos. Dizer que somos filhos de Odin não é reivindicar a divindade; mais exatamente é reconhecer que temos muito a aprender. No entanto, nem sempre é fácil estar disposto a aceitar as lições do deus." (HODUR apud PAXSON, 2020, pp.127-128)

Então, quem é mais Odin? Soluço, o jovem viajante em busca de conhecimento e novas terras? Stoico, o Imenso, o grande guerreiro e chefe de tribo? Velho Enrugado, o sábio e vidente da tribo, curandeiro, conhecedor e manipulador do destino? Qual dos três melhor incorporaria os aspectos odínicos?

Sim.

REFERÊNCIAS

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Agir, 2014. p.313.

COWELL, Cressida. Como mudar uma história de dragão. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011.

COWELL, Cressida. Como pegar a joia do dragão. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013.

COWELL, Cressida. Como treinar o seu dragão. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.

FREYIA Norling. How to Connect With Odin – S01E16. YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Kqqfoz7mha4 >. Acesso em 28 mar. 2021. 12 min.

LIST of names of Odin. Wikipedia. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Talk%3AList_of_names_of_Odin >. Acesso em: 29 mai. 2021.

LISTA de nomes de Odin. Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_nomes_de_Odin >. Acesso em: 29 mai. 2021.

MEDEIROS, Elton O. S. Hávamál: tradução comentada do nórdico antigo para o português. Mirabilia Journal 17, pp.545-601, jul./dez. 2013. Disponível em: <https://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/pdfs/2013_02_23.pdf >. Acesso em: 29 mai. 2021.

MYTHOLOGY & Fiction Explained. How Odin Lost His Eye – Norse Myhtology. YouTube. Disponível em: . Acesso em: 28 mar. 2021. 2 min.

ODIN’S names and titles. Encyclopedia Mythica. Disponível em: <https://pantheon.org/articles/o/odins_names.html >. Acesso em: 28 mar. 2021.

OLD Wrinkly. How To Train Your Dragon Wiki. Disponível em: <https://howtotrainyourdragon.fandom.com/wiki/Old_Wrinkly >. Acesso em: 28 mai. 2021.

PAXSON, Diana L. O mundo de Odin: práticas, rituais, runas e magia nórdica no neopaganismo germânico. São Paulo: Editora Pensamento Cultrix, 2020.

PINTO, Tales dos Santos. As Valquírias e a mitologia nórdica. Brasil Escola. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/mitologia/as-valquirias-mitologia-nordica.htm >. Acesso em 30 mai. 2021.

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Valhǫll. Wiktionary, the free dictionary. Disponível em: <https://en.wiktionary.org/wiki/Valh%C7%ABll#Old_Norse >. Acesso em: 29 mai. 2021.

VALKA. Nordic Names. Disponível em: <https://www.nordicnames.de/wiki/Valka >. Acesso em: 29 mai. 2021.

VALKYRIE. Wikipedia, the free encyclopedia. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Valkyrie >. Acesso em: 30 mai. 2021.

VALKYRIE. Wiktionary, the free dictionary. Disponível em: <https://en.wiktionary.org/wiki/valkyrie >. Acesso em: 29 mai. 2021.

VALKYRJA. Wiktionary, the free dictionary. Disponível em: <https://en.wiktionary.org/wiki/valkyrja#Old_Norse >. Acesso em: 29 mai. 2021.

VALQUÍRIAS. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Valqu%C3%ADrias >. Acesso em: 30 mai. 2021.

1 thought on “Simbolismos na Literatura e Cinema #4 – Velho Enrugado (ou os Três Odin’s em HTTYD – parte 3)”

  1. Parece que Odin não é o único que bebeu o hidromel da poesia, não? Suas postagens são sempre completas e não tenho como competir pra deixar um comentário à altura. O fato é que realmente nunca vi (embora tenha que admitir que nunca fui muito atrás) um conteúdo tão aprofundado sobre as facetas de Odin & sua relação com X personagem. O que li deu só um aspecto geral, talvez até Marvelficado (sim), do Pai de Todos e não tão bonzinhos. Só. Mas falar dos vários nomes e citar a Valhalarama fez toda a diferença!
    E, como não podia deixar de ser, o final foi espetacular. Algumas coisas necessitam ficar apenas no ar, sem muita resposta definitiva, e você sabe exatamente o que ou como encaixar tudo isso. Só posso dizer:
    Sim.

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