Análises

Simbolismos na Literatura e Cinema #5 – Jurassic Park vs. Jurassic World e a diferença entre “uma história de…” e “uma história com…”

"CUSHING: Ogilvie é antiquado. Ele provavelmente despreza histórias de fantasmas.
EDITH: Não é uma história de fantasmas.
CUSHING: Mas se tem um fantasma...
EDITH: Pai. É um... conduto... (fora do olhar do pai dela) ... um pretexto para falar de espiritualidade. O fantasma age como uma metáfora..." — trecho do roteiro de A Colina Escarlate (2015), pp.5-6, tradução livre

Muitas vezes, quando vamos pesquisar mais sobre uma história como As Crônicas de Gelo e Fogo (e sua adaptação, Game of Thrones), vemos pessoas, inclusive fãs, a definirem como: “uma história sobre dragões e zumbis de gelo” ou ainda “é O Senhor dos Anéis com zumbis e dragões”. Quando pedimos para que definam Jurassic Park (a primeira franquia mesmo), escutamos que é “uma história sobre dinossauros”. Como Treinar o Seu Dragão é “um filminho de dragão”, WandaVision é uma série de super-heróis, e assim por diante.

Contudo, como a personagem Edith bem diz em A Colina Escarlate: essa não é uma história de fantasmas, e sim com fantasmas. E qual a diferença?

Tema

O tema de uma história é, essencialmente, sobre o que ela fala. Geralmente, podemos encontrar um grande tema (que permeia todos os aspectos da história) e um pequeno grupo de subtemas (como ramos que saem do tema principal e se desenvolvem).

Por exemplo: Como Treinar o Seu Dragão tem como tema principal o amadurecimento. Sim, é sobre isso que a história fala. E, como subtemas, podemos enumerar amizade, família e (formação da) identidade – todos os quais se relacionam com o processo de amadurecimento dos personagens e de qualquer ser humano.

Toda boa história possui temas e subtemas claros. Eles devem ser facilmente identificados pelo leitor/espectador. Não que precisem ser óbvios ou algo dito na sua cara, mas o ideal é que ninguém precise passar 5 dias refletindo ou assistindo entrevistas do escritor para entender o que deveria ter sido explicado na obra.

Também não devemos confundir um tema com uma moral ou um ensinamento. O tema não deve, em si, passar nenhum ensinamento moral pronto. Ele é apenas o ponto principal da conversa, sobre o qual as histórias discorrerão. É por isso que temos tantas histórias sobre o mesmo tema, mas que são completamente diferentes entre si: porque pessoas diferentes contam narrativas diferentes e pensam de forma diferente sobre o mesmo tema.

Elementos narrativos

Como Edith diz e como as análises de simbolismos feitas já nesse blog indicam, muitos personagens, criaturas e até mesmo localizações podem ser elementos narrativos, metáforas e simbolismos que representam um determinado conceito para que possamos abordar essas ideias em uma história.

Fantasmas podem representar o passado, o mistério, o sombrio, um conhecimento ou evento esquecido, um sentimento que permanece em um local e o permeia mesmo muito depois das mortes daqueles que o sentiram. Dragões costumam representar poder, grandeza, magia, uma contraparte dos personagens humanos, sabedoria (especialmente no Oriente), violência (especialmente no Ocidente), uma força da natureza, ou ainda, um conceito demoníaco (dependendo se se está abordando um simbolismo de determinada religião/cultura ou outra). Zumbis (criados pela biologia ou pela magia) representam o mais puro horror, uma depravação da ordem natural das coisas em que há vida e então há morte.

Essas criaturas funcionam como elementos narrativos que carregam em si toda uma gama de ideias, filosofias e sentimentos. Elas são, então, uma forma de trazer toda essa gama de conceitos para o leitor/espectador sem ter que necessariamente nomeá-los um por um. Os elementos narrativos usados em uma história devem sempre auxiliá-la a mostrar o tema, mas eles não são o tema.

Ou melhor… é assim que elas funcionam em uma boa história.

O que define uma boa ou má história?

Bom… não há uma única resposta certa para isso. Tudo envolve muitos pontos como escrita, filmagem, atuação, verossimilhança, consistência e etc. Mas, ainda assim, é importante se considerar o que foi dito acima: os temas são identificáveis? E os elementos narrativos auxiliam na interpretação desse tema?

Se as respostas para essas perguntas forem “não”, temos um problema, porque então estaríamos falando de uma história que é confusa, bagunçada, que não fala sobre “nada” ou fala disso de maneira porca, que pode ter um monte de elementos narrativos que se contradizem ou que, no fim, não dizem nada.

É por isso que não deveriam existir histórias “de dragões” e sim “com dragões”, porque eles não são nem nunca foram um tema em si, e uma história “de dragões” diz… nada. Absolutamente nada. E não há obra artística que não diga nada.

Mesmo que você não tenha aprendido esses termos ou essa ideia de forma explícita, ainda é capaz de sentir quando há algo… errado com aquele filme ou aquele livro. Mesmo sem conhecimento teórico, ainda somos todos capazes de sentir quando parece faltar “tompêrro”, mesmo se não soubermos que o tempero é o tema e um bom desenvolvimento dos elementos narrativos.

Agora, vamos olhar para alguns exemplos que ilustram melhor qual é a diferença entre os dois tipos de histórias e porque as “histórias de […]” costumam ser bem mais vazias do que as outras.

Os filmes

Jurassic Park (1993) vs. Jurassic World (2015-)

O maior risco que um filme maravilhoso corre atualmente é ser tão maravilhoso que queiram fazer sequências para conseguir mais dinheiro. Esse foi o mal que atingiu Jurassic Park e o transformou em Jurassic World, uma franquia infinitamente mais pobre do que a sua predecessora. Mas por quê?

Jurassic Park, de 1993, foi baseado no livro de mesmo nome escrito por Michael Crichton. O longa dura 2h06 e demora 1 hora inteira para que o primeiro dinossauro apareça. Mas como pode ser que um filme de dinossauros leve tanto tempo para mostrar os dinossauros? Bem… É porque ele não é um filme de dinossauros.

Jurassic Park (1993)

Durante toda a primeira metade do filme, aprendemos como John Hamond foi capaz de trazer esses animais de volta à vida, quais foram as suas motivações para isso, conhecemos os protagonistas (Alan Grant, Ellie Sattler e Ian Malcolm), quais são as suas motivações, e então entramos em todo um debate filosófico-moral sobre a questão dos dinossauros: eles deveriam ter sido trazidos à vida? Se sim, de que forma? Se não, então por que não?

Uma das melhores cenas do filme inteiro ocorre nessa primeira metade, na qual Hamond está almoçando com os três doutores convidados e lhes pergunta o que eles acharam do parque. Ian Malcolm é explicitamente contra tudo o que está ocorrendo ali, e chega a descrever o parque de “um estupro do mundo natural”, o que enfurece Hamond. O velho milionário critica Malcolm, dizendo que ele não estava vendo o valor científico daquilo, e pergunta “Como podemos ficar à luz de uma descoberta e não agir?”, ao que Malcolm responde: “Seus cientistas se perguntaram tanto se podiam [trazer os dinossauros de volta à vida] que não se perguntaram se deviam.”

Grant e Sattler levantam os mesmos questionamentos, com foco especial no que Ellie diz: Como John Hamond tinha certeza de que poderia controlar aquelas criaturas? Muitos dos animais e plantas foram escolhidos pela sua estética, mas pouco se pensou nos riscos que poderiam trazer ao ecossistema e aos visitantes humanos no parque. Nos seus laboratórios, os cientistas contratados por Hamond assumiam ser capazes de controlar o DNA dos animais, de determinar qual era o seu sexo (sendo inicialmente todas fêmeas) e, portanto, controlar sua reprodução, de terem preparado cercados bons o suficiente para manter os animais ali dentro e Hamond dizia a cada 5 minutos como “não poupou despesas” para que o parque fosse perfeito.

Mas, obviamente, tudo deu errado. Nunca houve controle algum. No tour de demonstração, os dinossauros simplesmente não apareciam às vistas dos humanos, porque eles não entendiam e nem se importavam que estavam lá para um show capitalista; eles faziam o que queriam e se mostravam se quisessem e quando quisessem. O próprio DNA mesclado com anfíbios para completar as lacunas deu aos dinossauros a capacidade de trocarem de sexo e de se reproduzirem ao seu bel-prazer, tirando todo o controle populacional inicialmente planejado. O fato de terem colocado todo o cuidado e planejamento de sistemas nas mãos de um único homem e depois de desprezá-lo foi o cataclismo para os eventos de total caos que se sucederam, quando o tal homem, Dennis Nedry, decide trair Hamond e vender embriões para outra empresa, desligando a energia do parque (o que desligava as cercas elétricas de segurança) e morrendo antes de poder religá-la – tendo tudo isso acontecido no meio de uma tempestade natural comum na região escolhida para abrigar o parque (mais um problema mal calculado por Hamond, que não considerou que o clima “perfeito” da América Central vinha com o combo das tempestades). Como Ian Malcolm sabiamente (e quase profeticamente) disse: A vida encontra um meio.

Jurassic Park chega a ser não só um filme de ficção científica, mas também de terror. O horror do poder da natureza sobre o poder humano, da sua imensidão e força, o horror de percebermos que não somos absolutamente nada perante a força do mundo natural – não importa se somos milionários ou pobres, homens ou mulheres (ou qualquer identidade fora dessas), inteligentes ou burros.

Não só isso, como o filme também traz ainda mais debates e simbolismos que vão além do Homem (humanidade) vs. Natureza (o mundo externo não manipulado por nós), para Homem (poder masculino) vs. Natureza (o poder feminino), beirando os debates do ecofeminismo.

Regiane Folter descreve: “O ecofeminismo é vertente do movimento feminista que conecta a luta pela igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres com a defesa do meio ambiente e sua preservação”. No seu livro de 1989, Staying Alive: Women, Ecology and Development in India, Vandana Shiva argumenta que “estes modos alternativos de saber, que são orientados para os benefícios sociais e necessidades de sustento não são reconhecidos pelo paradigma reducionista capitalista, porque ele não consegue perceber a interdependência da natureza, ou a conexão da vida das mulheres, o trabalho e conhecimento com a criação de riqueza”.

Ora, esse é exatamente o debate que vemos se desenrolar em Jurassic Park. Enquanto todo o parque foi idealizado, planejado e criado por homens com objetivos puramente capitalistas embasados na dominação do mundo natural, são as personagens femininas as que menos têm problemas para lidar com a situação – e são as que resolvem os problemas, como vemos quando Ellie religa a energia do parque e Lex Murphy é a responsável por religar o sistema de segurança que os permite também se comunicar com o mundo fora da Ilha Nublar. Nesse momento, elas também estão simbolicamente tomando controle do poder “masculino”. Não só isso, como a ideia da conexão com a natureza, que sempre foi atrelada ao universo feminino, é de certo modo representada no fato de (ao menos inicialmente) todos os dinossauros serem fêmeas em um contexto no qual esses animais aparecem como elementos narrativos que representam a própria força da natureza.

O sexismo e o feminismo são levantados em várias pequenas cenas do filme, como quando Malcolm diz: “Deus cria dinossauros, Deus destrói dinossauros, Deus cria o homem, homem destrói Deus, homem cria dinossauros” e Ellie completa: “Dinossauros comem o homem e a mulher herda a Terra”; quando Ellie confronta Hamond e grita que ele vivia em uma ilusão de controle; ou mais tarde, quando Hamond (um homem velho que já usa bengala) diz que ele é quem deveria ir religar a energia perto do cercado dos raptores ao invés de Ellie (uma mulher jovem plenamente saudável) com o argumento de “eu sou um… e você é uma…”, ao qual ela revira os olhos e responde “Podemos discutir sexismo em situações de sobrevivência quando eu voltar” e sai.

Os dinossauros aqui funcionam como uma faceta da Mãe Natureza que mostra todo o seu poder e imponência perante os personagens que pensaram poder controlá-la, deixando todos os espectadores com reflexões claras ao subirem os créditos de: “Caramba, quanta gente sem noção, como eles acharam que poderiam controlar a natureza?”. O tema do filme é claro e os dinossauros funcionam como um ótimo elemento narrativo para abordar esse tema, sendo então um filme reflexivo, filosófico, questionador, ecofeminista, sci-fi e de terror com dinossauros.

Então… o que deu errado com Jurassic World?

Jurassic World (2015)

Os problemas são quase demais para serem enumerados: roteiro mal escrito, falas que mais soam como frases feitas de Facebook do que falas reais de pessoas reais, shots que claramente são o que eu e minhas amigas chamamos de “esse take foi feito em homenagem à galera dos gifsets do Tumblr” que não pesam em nada no filme em si, a sensação de que o filme mal começou e já terminou mas ao mesmo tempo está durando tempo demais que começamos a olhar nos relógios (mesmo durando apenas 1 minuto a menos do que o primeiro Jurassic Park), um dinossauro com um nível de inteligência impossível de se atingir que quase se torna uma deusa, confundirem inteligência com conhecimento… enfim.

Olhando por cima, Jurassic World parece (só parece) retomar os mesmos temas do primeiro filme: o conflito Homem vs. Natureza e as tentativas falhas da humanidade de controlar essa força para seu próprio lucro e entretenimento. Contudo, olhando mais de perto, as contradições começam a aparecer.

Primeiramente: este é um filme que se apoia com força no sentimento de nostalgia do público. Foi com isso que conseguiram lucrar tanto, seduzindo os espectadores a revisitarem a sensação gostosa que tinham ao ver os primeiros filmes, com direito à repetição da trilha sonora, cenas com movimentos de câmera semelhantes, o aparecimento e/ou menção a personagens da primeira trilogia, e até uma parte inteira do longa com os dois personagens juvenis caminhando pelos edifícios abandonados do primeiro parque. Apelar para a nostalgia do público não é em si um problema, desde que se entenda que a nostalgia sozinha não consegue sustentar um filme (muito menos o que seria uma trilogia nova); e quando retiramos os elementos nostálgicos de Jurassic World, ficamos com… não muita coisa.

O desenrolar do longa é praticamente o mesmo do primeiro filme. Pessoas viajam para o parque, se deslumbram, algum funcionário comete um erro tolo que faz com que os dinossauros escapem e ataquem os visitantes, e então é preciso encontrar uma forma ou de fugir ou de se livrar dos animais perigosos, sempre usando o Tiranossauro Rex como um deus ex machina. Até mesmo o “conflito” de uma das personagens principais não querer ter filhos e outra lhe perguntar o porquê que ocorre entre Alan Grant e Ellie Sattler é repetido com as irmãs Claire e Karen, só que dessa vez sem acrescentar nada na trama – enquanto a decisão de Grant de não ser pai é respeitada, ele se depara em uma situação na qual precisa cuidar de Lex e Tim e aprende que crianças não são os “monstros” que ele imaginava (o que mesmo assim não muda sua decisão); já o debate entre Claire e Karen é só uma cena chata na qual Karen afirma que Claire terá sim filhos, mesmo a irmã dizendo não ter certeza disso, e, no fim, seu relacionamento com seus sobrinhos não muda quase nada (na verdade, ela se mostra ainda extremamente desajeitada com os jovens e os meninos não aprendem a valorizá-la ou respeitá-la como Lex e Tim se afeiçoaram a Alan, pelo contrário, eles admiram Owen, o cara aleatório que de repente beija Claire).

Falando em Owen e Claire… Nesse filme, vemos Claire como uma das chefes executivas do novo parque, chamado agora de Jurassic World (“em respeito às vítimas do primeiro parque”? Talvez respeito maior fosse não insistir em abrir esse lugar, mas enfim), uma mulher focada em seu trabalho e que o realiza com excelência. Eu até posso imaginar que tentaram criar essa personagem como uma mostra de “progresso”, colocando uma mulher independente em um alto cargo na empresa, mas Claire na verdade se mostra como um dos reflexos do capitalismo extremo desse universo, sem nem mesmo tratar os dinossauros como animais vivos, chamando-os de “itens”. Enquanto isso, Owen, o novo protagonista, é um ex-militar da marinha que agora trabalha no parque cuidando dos raptores. Ele é um cara simples, que precisa só da sua cabana, sua moto e sua cerveja, e que, por algum motivo não mencionado, parece ter uma forte conexão com a natureza e os animais ao seu redor, com direito a uma cena na qual temos esse homem explicando para Claire que os dinossauros são animais vivos com seus próprios instintos e desejos que não se encaixam na lógica empresarial do parque e de seus administradores.

Conseguem ver onde já está o problema?

Em uma tentativa de ser “um filme para frente e igualitário”, Jurassic World acabou, na verdade, indo contra o debate inicial do filme de 1993. Ao longo do filme todo, Claire é tratada mais como uma piada do que como uma personagem, tendo que ouvir críticas de sua irmã, de Owen, do novo chefe e dono do parque, dos sobrinhos… enfim. A grande piada do filme é o quanto Claire está mergulhada no mundo empresarial (como se isso fosse errado) e “nunca relaxa” ou o quanto ela não tem noção do mundo natural, como nas cenas em que ela dá um nó na camisa para “mostrar que está pronta para a ação” ou na insistência ridícula de fazer a personagem correr por aí com salto alto e ainda ser capaz de ultrapassar um tiranossauro (spoiler alert: era para ela ter morrido ali se fizesse tamanha burrice).

Em momento nenhum do filme Claire é valorizada ou acrescenta qualquer coisa à história. Até mesmo quando ela toma as rédeas de uma situação de conflito e pega uma arma para enfrentar dinossauros, tudo o que os seus sobrinhos e a plateia viram e enfatizaram foi o fato de ter beijado Owen. Aliás, temos mais uma piadinha com Claire desesperada perguntando aos sobrinhos se estão bem e eles só perguntam “Quem é aquele cara?”, e depois quando eles parecem estar pedindo para não se separar da tia e ficarem seguros, mas, na verdade, estavam falando de Owen.

Em terceiro lugar: não há um único debate sobre o impacto ambiental dos dinossauros no novo longa. Pelo contrário, o que vemos agora é o típico personagem burro do exército americano que tem a brilhante ideia de usar os dinossauros como arma militar, à qual os protagonistas prontamente se opõem. Ninguém se preocupa com o impacto das espécies invasivas na ilha ou com uma potencial interação perigosa com os humanos; ninguém questiona o uso dos animais para lucrar com o parque; os dinossauros que antes não obedeciam às expectativas humanas e só apareciam quando bem entendessem agora estão visíveis a todos sem a menor dificuldade. O filme fica repetindo que os animais não estão sendo controlados pelos funcionários do parque, mas tudo o que vemos são eles agindo exatamente de acordo com o que os humanos esperam, sendo capazes de manipular tanto o seu comportamento que praticam jogos de caça, não estraçalham o Owen quando têm a chance, ficam passeando pelo campado para os humanos os verem de perto, o tiranossauro come a cabra no exato minuto em que os humanos a oferecem e depois segue Claire com o sinalizador sem complicações, atrasos ou distrações, e Owen consegue até dirigir uma moto lado a lado com velocirraptores.

Todo e qualquer questionamento ambientalista está morto e enterrado, assim como os questionamentos contra o sexismo dos personagens masculinos e do mundo capitalista. O que temos no lugar? Er… um questionamento porco contra o militarismo? É, parece que é isso.

Por que eu digo “um questionamento porco”? Porque ele nem mesmo é desenvolvido. Tudo o que vemos são Owen e o outro militar, Hoskins, repetindo as mesmas falas um para o outro até que o antagonista é, finalmente, morto por um velocirraptor. Se o longa quisesse mesmo questionar o militarismo, poderia ao menos ter se dado ao trabalho de inserir as famosas cenas dos personagens debatendo entre si com profundidade, talvez com Owen revelando experiências que teve na marinha que o levaram a se afastar e a ir contra Hoskins.

Ao invés das clássicas cenas com os personagens debatendo conceitos éticos, científicos, morais, ambientalistas e econômicos remetentes ao parque e à criação de dinossauros, temos um número absurdo de cenas de: dinossauros enfrentando dinossauros. O grosso do filme é basicamente cenas dos animais brigando, caçando, berrando e morrendo – o completo contrário dos primeiros filmes que passavam até 50% do tempo de tela levantando reflexões e nos quais os dinossauros na verdade não ligavam muito para os humanos. Afinal, esse era o ponto! Eles são animais que vão simplesmente viver sua vida seguindo seus instintos, podendo ignorar os humanos por completo ou tentar caçá-los. Mas ficar insistentemente brigando entre si, planejando ataques contra humanos ou perseguindo os protagonistas como se tivessem algum ressentimento pessoal? O que isso tem a ver com o tema ou com os primeiros filmes?

Retirando os excessos, os pormenores e todo o resto, o que sobra de Jurassic World é: rinha de dino. Foram feitas 2h05 de filme só para ganhar dinheiro em cima da nostalgia do público, para criar um dinossauro que nem age como um animal, e para mostrar dino brigando com dino.

Os dinossauros não estão mais funcionando em favor do desenvolvimento dos temas e subtemas da saga. Eles não servem mais como elementos narrativos que representam a força da Natureza, porque nem mesmo agem de acordo com sua natureza – seja a do mundo real ou a do universo apresentado pelos filmes anteriores.

Jurassic World nada mais é do que um filme de dinossauros e um grande exemplo de como a qualidade de toda uma obra cai quando se confundem temas com elementos narrativos e quando contradizemos tudo o que já foi estabelecido nas obras anteriores de uma franquia.

REFERÊNCIAS

COLDCRASHPICTURES. Saurian Cinema: gender & Jurassic Park. YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5hCuv16pzjs >. Acesso em: 28 jul. 2021. 30 min.

CRICHTON, Michael. O parque dos dinossauros. Rio de Janeiro: Editora Best-Seller, 1991.

ECOFEMINISMO. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ecofeminismo >. Acesso em: 26 jul. 2021.

FILMS&STUFF. Jurassic World – the cynical blockbuster. YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=72uwMT1STgI >. Acesso em: 28 jul. 2021. 23 min.

FILMS&STUFF. Why Jurassic Park looks better than its sequels. YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=BKALxKbjOaE >. Acesso em: 28 jul. 2021. 8 min.

FOLTER, Regiane. Ecofeminismo: você sabe o que é? Politize!, 23 jan. 2020. Disponível em: <https://www.politize.com.br/o-que-e-ecofeminismo/ >. Acesso em: 26 jul. 2021.

McHUGH, Nichole R. The park is open: an ecofeminist critique of Universal’s Jurassic World. Access: Interdisciplinary Journal of Student Research and Scholarship, v.2, n.1, artigo 4, 2018. Disponível em: <https://digitalcommons.tacoma.uw.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1032&context=access >. Acesso em: 28 jul. 2021.

JURASSIC Park. Direção: Stephen Spielberg. Produção de Kathleen Kennedy e Gerard R. Molen. EUA: Universal Studios, 1993.

JURASSIC World. Direção: Colin Trevorrow. Produção de Frank Marshall e Patrick Crowley. EUA: Universal Studios, 2015.

ROBBINS, Mathew; TORO, Guillermo del. A Colina Escarlate. Disponível em: <https://www.scriptslug.com/assets/uploads/scripts/crimson-peak-2015.pdf >. Acesso em: 26 jul. 2021.

SHIVA, Vandana. Staying alive: women, ecology and development in India. Zed Books: Londres, 1989. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=GPaA4Nb0w0YC&pg=PP1&redir_esc=y&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false >. Acesso em: 26 jul. 2021.

WISECRACK. Jurassic Park: a perfect movie? – the good, the bad & the brilliant. YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ir__b0djImU&pp=ugMICgJwdBABGAE%3D >. Acesso em: 28 jul. 2021. 34 min.

WISECRACK. Jurassic World: Fallen Kingdom – what went wrong? Wisecrack edition. YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=N0ouHx-g3Jc&pp=ugMICgJwdBABGAE%3D >. Acesso em: 28 jul. 2021. 11 min.

1 thought on “Simbolismos na Literatura e Cinema #5 – Jurassic Park vs. Jurassic World e a diferença entre “uma história de…” e “uma história com…””

  1. A riqueza de detalhes em cada post desse blog nunca deixa de me surpreender!
    Gostei muito da abordagem sobre Jurassic Park. Sinto que o filme caiu no senso comum (e meio acrítico) que simplesmente é um filme antigo *de* dinossauros, quando na real é muito mais do que isso. Por mais que a gente não consiga explicar muito bem, (igual você disse!) a gente sente que tem alguma coisa de errada com os novos filmes da franquia.
    A gente só entra e sai do cinema. Acha… Meh. E nem volta a falar tanto assim do assunto.
    De novo, posso apenas elogiar o “tômperro” dos seus posts!

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